“O
exercício da presidência da República é mais trabalhoso do que
prazeroso, porque não dá tempo de desfrutar. Só descanso mesmo quando me
recolho ao meu quarto para ler. Sem leitura a vida fica mais difícil.
Estou lendo o segundo volume de "A Construção Nacional", de José Murilo
de Carvalho” (Foto de Cristiano Mariz)
Amigos do blog, as reportagens e entrevistas de VEJA só ficam disponíveis na internet a partir das sextas-feiras da semana em que a revista é publicada.
Devido à importância da entrevista da presidente Dilma Rousseff à
revista, porém, antecipamos o texto completo para os leitores do blog
que não leram ou não têm o costume de ler a edição impressa.
O BRASIL AOS OLHOS DE DILMA
Em uma entrevista de duas horas a VEJA em Brasília, a
presidente Dilma Rousseff diz que o poder não é desfrutável, mas que
também não perde o sono com os problemas com os quais se defronta
Aos olhos de muita gente, a presidente Dilma Rousseff deveria estar
uma pilha de nervos na semana passada. Ela vinha de uma viagem à
Alemanha, onde pareceu, inadequadamente, dar lições de governança à
chanceler Angela Merkel.
Na reunião que teria com os maiores empresários brasileiros, ela lhes
daria “um puxão de orelha”, e, para completar o quadro recente de
tensão, a base aliada do seu governo no Congresso estava em
franca rebelião, contrariando seguidas iniciativas do Palácio do
Planalto nas votações.
Como pano de fundo da semana caótica, havia o fato de Dilma ainda não
ter convencido a opinião pública de ser a grande gestora que
o eleitorado escolheu para governar o Brasil em 2010. Como escreve nesta
edição J.R. Guzzo, colunista de VEJA, capturando uma sensação mais
ampla, “a maior parte das atividades do governo brasileiro hoje em
dia poderia ser descrita como ficção”.
Mas Dilma não estava nem um pouco tensa quando recebeu a equipe
de VEJA (Eurípedes Alcântara, diretor de Redação, e os redatores-chefes
Lauro Jardim, Policarpo Junior e Thaís Oyama) na tarde de quinta-feira
passada para uma conversa de duas horas em uma sala contígua a seu
gabinete de trabalho no Palácio do Planalto, em Brasília.
Dilma vinha de encerrar a reunião com os empresários, em que,
disciplinadamente, cada um dos 28 presentes teve cinco minutos para
falar, e não pareceu ter dado — ou levado — metafóricos puxões de
orelha. “Tivemos uma conversa séria. Coisa de país que sabe onde está no
mundo e aonde quer chegar”, disse ela.
Buzinaço estéril da “guerra cambial”
“Ficamos todos de acordo que os impostos têm de cair, os
investimentos privados e estatais têm de aumentar e o que precisar ser
feito para elevar a produtividade da economia brasileira e
sua competitividade externa será feito.”
Para quem vinha tendo os ouvidos atacados pelo buzinaço estéril da
“guerra cambial” contra o Brasil — expressão que, como se verá na
entrevista a seguir, ela não acha própria —, a frase de Dilma, mesmo sem
a sonoridade do português castiço, soa como música.
É saudável quando o governante não põe em inimigos externos toda
a culpa por coisas que não funcionam. Melhor ainda quando reconhece
que seu próprio campo, além de não ter soluções para tudo, é também
parte do problema.
“Não dá para consertar a máquina administrativa federal de uma vez,
sem correr o risco de um colapso. Nem na iniciativa privada isso é
possível. No tempo que terei na Presidência vou fazer a minha parte, que
é dotar o estado de processos transparentes em que as melhores práticas
sejam identificadas, premiadas e adotadas mais amplamente. Esse será
meu legado. Nosso compromisso é com a eficiência, a meritocracia e o
profissionalismo.”
“Eu disse aos empresários que seremos aliados nas iniciativas para
aumentar a taxa de investimento da economia — e não mais apenas o
crédito para o consumo”, contou ela. Suas propostas lembram o gato do
chinês Deng Xiaoping. Não importa a cor. O que interessa é que ele cace
ratos.
Pré-sal e nacionalização de equipamentos
Dilma Rousseff, porém, continua sendo a Dilma da lenda da mulher
durona, de coração nacionalista. Confrontada com as críticas de que a
Petrobras não pode ser um braço de política industrial do governo, ela
reagiu: “A Petrobras tem de saber que o petróleo é do Brasil e não
dela”.
Felizmente, Dilma admite que a extração do petróleo do pré-sal tem
prioridade até sobre a sacrossanta exigência de 65% na taxa
de nacionalização dos equipamentos — o que inviabiliza ou encarece
muitas operações. Ela não verbaliza que a taxa pode ser reduzida, mas
diz que, entre a manutenção do patamar de nacionalização e a garantia de
produção dos campos do pré-sal, fica com a produção.
"O
Brasil está em uma situação agora em que podemos dizer aos países ricos
que não queremos o dinheiro deles. Eu disse isso com toda a clareza à
chanceler Angela Merkel durante minha visita à Alemanha. Aqui se
noticiou que eu estava querendo dar lições à Alemanha. Não foi nada
disso. Eu quis deixar claro que o Brasil não quer mais ser visto como
destinação de capital especulativo ou apenas como mercado consumidor dos
produtos que eles exportam" (Foto: Jens Schlueter / AP)
Pôr a culpa das reais distorções do Brasil em pressões produzidas no exterior não é uma maneira de fugir dos problemas?
Primeiro, não é verdade que estejamos agindo dessa maneira. É
uma simplificação grosseira supor que o governo brasileiro considere as
pressões externas a única causa de nossos problemas.
Segundo, ignorar que existem fortes externalidades agindo sobre a
economia brasileira é um erro que não podemos cometer, sob pena de
arriscar a prosperidade nacional, a saúde de nossa base industrial e os
empregos de milhões de brasileiros.
Terceiro, os fatores exógenos são reais e não podem ser subestimados.
A senhora se refere ao que chegou a ser chamado de “guerra cambial”?
Não acho adequado ver o fenômeno do tsunami de liquidez que foi
criado pelos países ricos em crise como uma agressão proposital às
demais nações. Mas a saída que eles encontraram para enfrentar seus
problemas é uma maneira clássica, conhecida, de exportar a crise.
Quando o companheiro Mario Draghi (economista italiano presidente do
Banco Central Europeu) diz “vamos botar a maquininha que faz dinheiro
para rodar”, ele esta inundando os mercados com dinheiro. E o que fazem
os investidores? Ora, eles tomam empréstimos a juros baixíssimos, em
alguns casos até negativos, nos países europeus e correm para o Brasil
para aproveitar o que os especialistas chamam de arbitragem, que, grosso
modo, é a diferença entre as taxas de juros praticadas lá e aqui.
Eles ganham a nossa custa. Então, o Brasil não pode ficar paralisado
diante disso. Temos de agir. Temos de agir nos defendendo — o que é algo
bastante diferente de protecionismo.
Quais as diferenças entre se defender e recorrer ao protecionismo?
O protecionismo é uma maneira permanente de ver o mundo exterior como
hostil, o que leva ao fechamento da economia. Isso não faremos. Já foi
tentado no passado no Brasil com consequências desastrosas para o nosso
desenvolvimento.
Cito aqui o caso da reserva de mercado para computadores, que, nos
anos 80, atrasou a modernização do parque industrial brasileiro e nos
privou de tecnologias essenciais. Não vamos repetir esse erro. Não vamos
fechar o país.
Ao contrário, queremos investimentos estrangeiros produtivos. Mas
vamos, sim, defender as nossas empresas, os nossos empregos. O que
estamos fazendo, e vamos continuar fazendo, é contrabalançar com medidas
defensivas as pressões desestabilizadoras externas que estão carreando
para o Brasil quantidades excessivas de capital especulativo.
Quando o panorama externo mudar para melhor, nós saberemos que chegou
a hora de revogar as barreiras momentâneas que foram criadas.

“Quando
o companheiro Mario Draghi (economista italiano presidente do Banco
Central Europeu) diz ‘vamos botar a maquininha que faz dinheiro para
rodar’, ele está inundando os mercados com dinheiro. O Brasil não pode
ficar paralisado diante disso. Temos de agir. Temos de agir nos
defendendo — o que é algo bastante diferente de protecionismo” (Foto:
Alex Domanki / Reuters)
Mas atrair dinheiro de fora não é bom em qualquer circunstância?
Não.
O Brasil está em uma situação agora em que podemos dizer aos países
ricos que não queremos o dinheiro deles. Não queremos pagar os juros de
13% por empréstimos que eles nos oferecem. Obrigada, mas não queremos
pagar as exorbitantes taxas de permanência desses empréstimos, quantia
que eles cobram mesmo quando não usamos o dinheiro, apenas para que os
recursos estejam disponíveis a qualquer momento.
Eu disse isso com toda a clareza a chanceler Angela Merkel durante
minha visita à Alemanha. Aqui se noticiou que eu estava querendo dar
lições à Alemanha. Não foi nada disso. Eu quis deixar claro que o Brasil
não quer mais ser visto como destinação de capital especulativo ou
apenas como mercado consumidor dos produtos que eles exportam.
Também deixei bem claro que, quando o Banco Central Europeu joga de
repente 1 trilhão de euros no mercado, ele não pode esperar que os
países fiquem de braços cruzados enquanto parte desses recursos vem
somente passear no Brasil e voltar mais gorda para a Europa sem ter
deixado aqui nenhum benefício.
Como Angela Merkel reagiu?
Ela disse que entendia meu ponto de vista perfeitamente, mas que os
países emergentes não podiam esquecer que nós temos responsabilidades
globais como consumidores ávidos e, portanto, como parte da solução das
economias estagnadas da Europa.
Eu, então, respondi que nós devemos ser parceiros no ataque
aos problemas globais, mas que nossa colaboração não podia ser mais
apenas como mercados consumidores e foco de atração de capitais
especulativos.
Disse a ela que o Brasil quer muito atrair empresas alemãs de
tecnologia de ponta. Disse que essas empresas são bem-vindas ao Brasil
e, uma vez instaladas aqui, com transferência de tecnologia e criação de
empregos, serão tratadas como empresas nacionais, com acesso ao
crédito e outras facilidades concedidas às empresas nacionais.
As pessoas precisam entender que o Brasil não está recorrendo ao
protecionismo, nem arreganhando os dentes para quem quer que seja. Não é
disso que se trata. Ainda assim, tem muita coisa errada no Brasil que
precisa ser consertada e independe do que vem de fora… Sem dúvida.
Hoje mesmo (quinta-feira passada, 22) eu me reuni com alguns dos
maiores empresários brasileiros e tivemos uma troca franca de ideias
sobre como atacar nossas distorções mais paralisantes.
Eu disse a eles que nossa maior defesa é aumentar a taxa de
investimento privado. Eles reclamaram que os impostos cobrados no Brasil
inviabilizam as melhores iniciativas e impedem que eles possam competir
em igualdade de condições no mundo. Eu concordo. Temos de baixar nossa
carga de impostos. E vamos baixá-la.
Vamos nos defender atacando — ou seja, exportando e ganhando
mercados. Para isso, temos de aumentar nossa taxa de investimento real
para pelo menos 24%. O governo vai investir e gerar o ambiente de
negócios para que isso ocorra. Os empresários terão de fazer a parte
deles, aproveitar as oportunidades, assumir riscos e deixar aflorar
aquilo que o Keynes chama de “instinto animal” da livre-iniciativa.

“Os
empresários reclamaram que os impostos cobrados no Brasil inviabilizam
as melhores iniciativas e impedem que eles possam competir em igualdade
de condições no mundo. Eu concordo. Temos de baixar nossa carga de
impostos. E vamos baixá-la. Temos de aumentar nossa taxa de investimento
real para pelo menos 24%” (Foto: Sérgio Lima / FolhaPress)
Como diria o Garrincha, é preciso combinar com os russos — e
os indianos, e os chineses. Eles já estão atacando os mercados bem antes
do que o Brasil, a senhora concorda?
Sim.
Mas a China está dando sinais evidentes de fadiga do modelo focado
fortemente na exportação. Tenho acompanhado os debates sobre a China, e
seus líderes não escondem que não podem mais negligenciar o mercado
consumidor interno.
Eles estão mudando seu foco aceleradamente para atender às demandas
do mercado interno chinês. Isso significa que a China em breve vai
importar mais do que commodities. Os chineses vão importar bens de
consumo — geladeiras, fogões, forno de microondas —, e a parte da
indústria brasileira que via a China como ameaça poderá passar a vê-la
como oportunidade de mercado também para nossas exportações de
manufaturados.

“Os
líderes da China não escondem que não podem mais negligenciar o mercado
consumidor interno. Eles estão mudando seu foco aceleradamente para
atender às demandas do mercado interno chinês. De ameaça, a China pode
se tornar oportunidade de mercado também para as exportações brasileiras
de manufaturados” (Foto: Ed Jones / AP)
A senhora consumiu boa parte do primeiro ano de seu governo
resolvendo crises provocadas por denúncias de corrupção. Agiu com
presteza e demitiu quem estava comprometido. É difícil
encontrar auxiliares honestos?
A questão não deve ser colocada dessa forma.
Os processos no governo é que precisam ser de tal forma claros e os
resultados de avaliação tão lógicos que não sobre espaço para as
fraquezas dos indivíduos.
Montesquieu ensinou que as instituições é que devem ser
virtuosas. Nenhuma pessoa que é chamada para o governo pode achar que
haverá algum tipo de complacência. Nós temos de ser o mais avesso
possível aos malfeitos. Não vou transigir.
É bom ficar claro que isso não quer dizer que todos os ministros que
deixaram o governo estivessem envolvidos com alguma
irregularidade. Alguns pediram para sair para evitar a superexposição ou
para se defender das acusações que sofreram.
Por que a senhora não gostou da expressão “faxina ética”?
Parece preconceituoso. Se o presidente fosse um homem, vocês falariam em faxina? Isso é bobagem.
A questão não é essa palavra, a questão é que o governo tem uma
obrigação de oferecer serviço público de qualidade à população. E para
isso é necessário que os processos no governo sejam eficientes,
meritocráticos e transparentes. Eu sempre mudei para tentar melhorar.
Obras
de restauração do Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro: “O Brasil
fará a melhor de todas as Copas do Mundo. Querem apostar quanto comigo?”
(Foto: Genílson Araújo / Ag. O Globo)
Essas mudanças, porém, agora estão gerando uma crise no Congresso…
Não há crise nenhuma.
Perder ou ganhar votações faz parte do processo democrático e deve
ser respeitado. Crise existe quando se perde a legitimidade. Você não
tem de ganhar todas. O Parlamento não pode ser visto assim. Em alguma
circunstância sempre vai emergir uma posição de consenso do Congresso
que não necessariamente será a do Executivo.
Isso faz parte do processo. A tensão é inerente ao presidencialismo
de coalizão com base partidária. No governo passado perdemos a votação
da CPMF, e o céu não caiu sobre a nossa cabeça.
O que a senhora achou do discurso do ex-presidente Fernando
Collor alertando-a de que ele perdeu o cargo por falta de sustentação no
Congresso?
Não li o discurso.
Mas vocês souberam do discurso do Miro? (O deputado Miro Teixeira, no
dia seguinte ao discurso de Collor, recolocou a questão nos eixos
lembrando que não existe comparação possível entre os governos Collor e
Dilma.)
O que é preciso ter em mente é que as grandes crises
institucionais no Brasil ocorreram não por questiúnculas, pequenas
discordâncias entre o Executivo e o Legislativo. As grandes crises
institucionais se originaram da perda de legitimidade do governante.
Mas essas derrotas, coincidentemente, começam quando o governo decide
trocar suas lideranças no Congresso e rever sua relação com alguns
aliados.
Não gosto desse negócio de toma lá, dá cá. Não gosto e não vou deixar
que isso aconteça no meu governo. Mas isso nada tem a ver com a troca
dos líderes. Eles não saíram por essa razão. Devemos considerar que os
parlamentares vivem um momento tenso, natural em um ano de eleições
municipais.
Mas repito: não há crise nenhuma.
É difícil suceder na Presidência a um político popular e amado como Lula?
Não. É facílimo.
Para começo de conversa, eu fui ministra da Casa Civil do
governo Lula durante cinco anos e despachava com ele dezenas de vezes
por dia. Aprendi muito.
Alguns setores menosprezam o Lula por causa de suas origens, mas eu
sou testemunha de que ele tem momentos de gênio na política e um carisma
que nunca vi em outra pessoa.
Esse metalúrgico que muita gente menospreza mudou o Brasil e ajudou
a criar uma nova ordem mundial com o G20, por exemplo, do qual ele foi
o grande incentivador.
A senhora tem dificuldade em discordar do ex-presidente Lula?
Nem um pouco.
Nós já divergimos muito no passado e continuamos não concordando em algumas coisas.
Eu tenho uma profunda admiração por ele, uma profunda amizade nos
une, ele é uma pessoa divertidíssima, com uma capacidade de afeto
descomunal. Mas discordamos, sim. Isso é normal. Mas, no que é
essencial, nós sempre concordamos.
Em que momentos a senhora percebe que faz diferença ser uma mulher na Presidência?
Quando eu acordo de manhã e me vejo no espelho.
Estou brincando. Eu acho que a diferença mesmo eu vejo quando as
mulheres simples desse Brasil param para conversar comigo, acenam para
mim, em quem enxergam um símbolo de emergência e de ascensão. A cada dia
eu me convenço de que o século XXI é o século das mulheres.
A senhora se dá o direito de ter uma opinião como mulher
sobre determinado assunto, o aborto, por exemplo, e outra como
presidente?
De maneira alguma.
Ser presidente não me dá o direito de expressar opinião pessoal, particular ou subjetiva sobre qualquer tema.
Aos 64 anos, tenho de ter a sabedoria de guardar essas opiniões para mim mesma.

“Não
há crise nenhuma. Perder ou ganhar votações faz parte do processo
democrático e deve ser respeitado. Crise existe quando se perde a
legitimidade. Você não tem de ganhar todas. O Parlamento não pode ser
visto assim. Em alguma circunstância sempre vai emergir uma posição de
consenso do Congresso que não necessariamente será a do Executivo”
(Foto: Fábio Pozzembom / ABR)
O que a senhora descobriu como presidente que não sabia como ministra?
O povo se identifica com você, vê em você uma igual na Presidência.
E, por isso, o brasileiro se entrega, mostra como é caloroso. Ele te
identifica na rua, grita seu nome, te abraça, te pega. Você sente que
está fazendo aquilo de que ele precisa.
Isso é maravilhoso!